A pouco menos de cinco meses para completar uma década do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), um dos pilares essenciais para a reparação ambiental da Bacia do Rio Doce permanece inacessível à população atingida: o Plano de Recuperação Ambiental (PRA). Previsto no novo Acordo de Reparação, homologado em novembro de 2024, o documento deveria ter sido entregue pela mineradora Samarco em março deste ano. No entanto, a entrega foi prorrogada, com a nova previsão para julho de 2025 – quase dez anos após o maior crime socioambiental do país. Enquanto a espera se prolonga, milhares de famílias atingidas continuam a conviver diariamente com os efeitos devastadores da lama tóxica que invadiu o rio e os territórios.
Vanessa Rodrigues, coordenadora da equipe temática socioambiental do programa Médio Rio Doce da Aedas, assessoria técnica independente que atua junto às pessoas atingidas no Vale do Aço e Leste de Minas Gerais, expressa profunda preocupação. "Sem um plano aprovado, não há diretrizes claras, cronograma, nem orçamento específico para a reparação ambiental da bacia do Rio Doce", afirma.
Rodrigues salienta que, embora a prorrogação no prazo de apresentação do plano esteja prevista no acordo, sua ausência é um sinal alarmante. "A ausência do PRA compromete a efetividade da recuperação ecológica, aumenta o risco de novos danos e dificulta a responsabilização das empresas. É um sinal claro de que a reparação segue sendo conduzida sem planejamento e sem diálogo", enfatiza.
O Plano de Recuperação Ambiental é reconhecido como o principal instrumento técnico e jurídico para guiar a reparação após desastres. O Anexo 16 do novo Acordo estabelece que o PRA deve consolidar todas as obrigações ambientais, definindo metas, indicadores, áreas prioritárias, cronogramas e métodos de execução. Além disso, o plano deveria ser a base legal para o acompanhamento por outros atores e garantir a participação da sociedade civil. No entanto, a realidade é outra: nenhuma versão do plano foi disponibilizada para consulta pública, e as comunidades não foram ouvidas em sua elaboração, resultando em ações fragmentadas e unilaterais por parte das mineradoras, sem conexão com as demandas dos territórios.
Thiago Alves, dirigente nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), critica a falta de participação das comunidades na elaboração do PRA. "Apesar da centralidade do Plano para a recuperação ambiental, as pessoas atingidas não foram consultadas em momento algum sobre sua construção. Não há, sequer, previsão de participação da sociedade civil no Anexo 16 do novo acordo, o que rompe com a experiência anterior do CIF, que contava com representação dos atingidos nas câmaras técnicas. Isso compromete e fragiliza o controle social. Nossa expectativa é que haja abertura para o diálogo, com funcionamento do Anexo de Participação, para garantir que os territórios atingidos tenham voz no que diz respeito à reparação ambiental", declarou.
Apesar dos quase R$ 800 milhões que a mineradora Samarco alega ter aplicado em ações ambientais desde 2018 – incluindo reflorestamento, cercamento de nascentes e monitoramento da qualidade da água e dos sedimentos –, para quem vive nas margens do Rio Doce, esses números não se traduzem em resultados tangíveis. A empresa informa que 41 mil hectares já foram cercados e mais de 3,7 mil nascentes protegidas.
Entretanto, a confiança na qualidade da água fornecida continua sendo uma preocupação central para os moradores. Dados do Registro Familiar, levantamento da Aedas para caracterizar os núcleos familiares e a extensão dos danos, revelam que cerca de 93,93% das pessoas atingidas não confiam na qualidade da água do Rio Doce, principal fonte de abastecimento de diversos distritos, como Cachoeira Escura, em Belo Oriente (MG).
Maria Rosa, professora aposentada e membro da Comissão de Atingidas e Atingidos do município, compartilha essa desconfiança. "A bomba que faz a captação para o reservatório da Copasa fica diretamente dentro do Rio Doce. Quando o rio está assoreado vai uma máquina lá para mover a areia, para tirar a areia, para entrar água para captar. Então pega aquela água barrenta e aquela água ali é decantada… e depois levada para a nossa residência. Cheia de minério! Como confiar?", questiona.
Isac Pereira, pescador e morador de Itueta, cidade do Leste de Minas Gerais triplamente atingida pelo desastre, reforça a fala de Maria Rosa. "Nós estamos há quase dez anos lutando pela reparação dos nossos danos. A pesca continua inviável, a agricultura foi desestruturada, e ninguém consegue confiar na água que chega nas nossas casas. O que adianta dizer que reflorestaram terrenos se o rio continua morrendo?", indaga.
Vanessa Rodrigues também alerta que os danos acumulados têm um reflexo direto na saúde física e mental da população, com um aumento preocupante de doenças associadas à contaminação ambiental e à instabilidade socioeconômica. "Tal cenário configura uma grave violação de direitos humanos, ambientais e territoriais, evidenciando o prolongamento da injustiça socioambiental vivida pelas populações atingidas desde o rompimento da barragem de Fundão", conclui.
Nos últimos dois anos, a Assessoria Técnica Independente Aedas tem desempenhado um papel crucial no acolhimento e encaminhamento de demandas socioambientais. A assessoria analisa qual ator do processo reparatório – sejam as Instituições de Justiça (IJs), a Fundação Renova, ou as Câmaras Técnicas do Comitê Interfederativo (CIF) – está mais apto a atender às necessidades das pessoas atingidas. Essas demandas são, em grande parte, identificadas e debatidas em espaços participativos criados junto às comunidades, como os Grupos de Atingidos e Atingidas (GAAs), os Grupos de Agentes Multiplicadores (AGMs) e as Comissões de Atingidos e Atingidas.
Com o novo processo reparatório, os anexos 16, 17 e 18 – que abordam diretamente as questões socioambientais – terão uma governança própria. No entanto, esses novos espaços e atores ainda estão em fase de estruturação. Neste momento, a Aedas acompanha a execução das ações previstas nesses anexos e o processo de definição e consolidação de suas respectivas governanças. Além disso, a assessoria continua a encaminhar as demandas socioambientais relacionadas ao período de transição e encerramento das atividades da Fundação Renova, especialmente no que se refere às ações e obrigações que ainda precisam ser cumpridas antes de sua liquidação.
A entrega do Plano de Recuperação Ambiental em julho de 2025 é aguardada com apreensão, mas também com a esperança de que, finalmente, a reparação integral e a participação efetiva das comunidades se tornem realidade.
Foto: Divulgação / Acervo Aedas